Imaginem a seguinte situação: uma criança de 12 anos vai a uma sessão de psicoterapia da irmã mais velha, a pedido da psicóloga. Ao final da sessão, ela (a psicóloga) chama a mãe para dizer que seu filho é hiperativo e pergunta se ninguém havia lhe dito isto antes. Encaminha a criança a um psiquiatra. Ou melhor, AO psiquiatra. O que ela conhece e em quem diz confiar muito. Os pais marcam a consulta e levam o filho alguns dias depois, quando o médico já tem em mãos um relatório daquela psicóloga, onde é provável que tenha o diagnóstico de hiperatividade. Digo provável porque os pais não tiveram acesso a este documento e, portanto, não conhecem o seu conteúdo. O psiquiatra conversa com os dois e observa a criança enquanto dura a consulta. Isto parece ser o suficiente para que confirme o diagnóstico. Entrega a eles uma receita de “concerta” (pelo menos não é com “s”), estimulante do sistema nervoso central que é utilizado para o tratamento do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), embora o mecanismo de ação terapêutica neste transtorno não seja conhecido. Pede que retornem 15 dias depois para que possam definir um possível aumento da dosagem.
Pois bem. Isto aconteceu. Esta mãe chegou ao meu consultório encaminhada pela escola do garoto que considerou precipitado o diagnóstico feito pela psicóloga e confirmado pelo psiquiatra. Veio antes do retorno a ele, por ter ficado confusa com as divergências de opiniões. Geralmente, a família procura estes profissionais quando a escola faz o encaminhamento, por não saber mais como lidar com um aluno, em função de comportamento agitado, desatento, indisciplinado. Não foi o caso. O que, na minha avaliação, dá pontos a esta escola. Isto demonstra que ela dá conta da diversidade de alunos que possui, sem ter a expectativa de que todos sejam bem comportados e obedientes.
A psicóloga deu o diagnóstico de hiperatividade, em função do comportamento do garoto, naquele curto espaço de tempo, dentro das quatro paredes do seu consultório. O psiquiatra confirmou o diagnóstico pela mesma razão e após ler o relatório que recebeu dela e de alguns professores da escola. Entre estes, é consenso que o aluno é bastante agitado em sala de aula. No entanto, em nenhum momento algum deles pediu à Coordenação que ele fosse encaminhado a um especialista.
Acho muito provável que esta criança preencha os critérios do DSM IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de transtornos Mentais) para TDAH. Ou seja, é possível que apresente os seis ou mais (dos nove) sintomas de desatenção e/ou hiperatividade necessários para a confirmação do diagnóstico, segundo este manual (por sinal, na minha opinião alguns deles deveriam ser considerados o mesmo, mas isso vale uma outra postagem). Ainda segundo o DSM, é necessário que estes sintomas persistam “por pelo menos seis meses, em grau mal-adaptativo e inconsistente com o nível de desenvolvimento”. É preciso ainda que algum prejuízo causado por eles esteja presente em dois ou mais contextos e “deve haver claras evidências de prejuízo clinicamente significativo no funcionamento social, acadêmico ou ocupacional.” Ou seja, será que estes dois profissionais tiveram tempo pra garantir todas essas condições?
O que eles sabem dessa criança, da escola dessa criança, dessa criança na escola, dessa criança com os pais, dos pais dessa criança? De como ela se desenvolveu, do que sente, do que faz e o que sonha? Das qualidades que ela tem, das reações que provocam nela, de como ela brinca com os amigos, de como é quando não está agitada num consultório com pessoas desconhecidas? Acho que quase nada. Mas querem consertá-la. Ou melhor, conCertá-la. O que me indigna é que quem está fazendo isto com as crianças é justamente quem deveria protegê-las dos estigmas. Elas não têm autonomia e vão pra onde são levadas. E correm o risco de se tornarem aquilo que outros vêem nelas. Sem conhecê-las.
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