quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Quando não tem ninguém olhando

Tenho escutado de muitas pessoas que votar em um dos candidatos, é ser conivente com o vale- tudo das campanhas e com os casos de corrupção, antigos e recentes (estes, bem mais lembrados). Não tenho dúvidas em relação à trajetória absolutamente íntegra da ex-candidata Marina Silva. Mas tenho dúvidas, e muitas (acho até, que tenho a certeza absoluta do contrário) de que ela, na presidência, conseguiria livrar nossa nação destas práticas tão indesejáveis. Não acredito que isto vá acontecer num movimento de fora para dentro. Mas sim, em consequência de uma transformação profunda em nossa sociedade. Lenta, gradual e pela qual cada um de nós é responsável. O problema do desvio moral, na minha opinião, é de toda a sociedade. Está presente em muitas práticas aparentemente irrelevantes de todos nós. Os exemplos são infinitos: um comercinate erra no troco, te dá dinheiro a mais e você não fala nada; você sabe que não pode jogar lixo no chão, não tem ninguém olhando e você joga; você sai com seu cachorro para passear, ele faz cocô na calçada do outro e você finge que não viu; você precisa transferir seu carro, mas sua documentação não está em ordem e você paga para um despachante dar um jeitinho; você sabe que vai ter um evento concorrido na sua cidade e usa seus contatos para conseguir acesso privilegiado. Acredito que serão necessárias ainda muitas gerações para que a nossa sociedade seja predominantemente (nunca totalmente) constituída por sujeitos que tenham uma formação moral sólida e, portanto, refratária a situações que privilegiem a sua vida pessoal em detrimento da coletividade. Eu não espero ver nos próximos quatro anos o fim da corrupção na política. Não tenho mesmo essa ilusão. Mas quero, neste momento, tomar partido. E tomar partido é escolher o lado que mais se aproxima das minhas convicções. Mesmo sabendo que tomar partido é correr o risco de, daqui a quatro anos, ter que assumir o erro da minha escolha, se este for o caso. Dilma. 13. Este é o lado que escolhi.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Maria Rita Kehl

A psicanalista Maria Rita Kehl foi mesmo demitida do jornal O Estado de São Paulo, onde era colunista desde fevereiro deste ano. O motivo teria sido a coluna publicada um dia antes do primeiro turno, em que comenta a decisão editorial do jornal de apoiar a candidatura de José Serra à Presidência e faz uma análise sobre a "desqualificação" dos votos dos mais pobres. (http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20101002/not_imp618576,0.php)

O trecho abaixo é de um dos belíssimos ensaios desta, que é uma das nossas mais brilhantes intelectuais e que o Estadão acaba de perder. A sua liberdade de se expressar pode ter sido confrontada, mas não a nossa de acompanhá-la. Eu tive o privilégio de participar de um grupo de estudos em psicanálise, supervisionado por ela, quando estava no quarto ano de faculdade. Desde então, nunca mais a perdi de vista.


"Masculino/Feminino: O Olhar da Sedução
Maria Rita Kehl

O que se diz de imediato sobre a sedução é que é um jogo. Caçada silenciosa entre dois olhares; captura numa rede perigosa de palavras. Jogo arriscado e fascinante ─ angústia e gozo ─ onde o vencedor não sabe o que fazer de seu troféu e o perdedor só abe que perdeu seu rumo; um jogo cuja única possibilidade de empate se chama amor.
Essa abordagem parte do ponto de vista do aparente perdedor ─ o seduzido─ já que é ele quem nos deixa registro sobre sua experiência. É o seduzido que se expressa ─ na poesia, na literatura, nos consultórios de psicanálise. É o seduzido que tenta compreender a transformação que se deu nele ao mesmo tempo em que tenta entender o poder do olhar sedutor. O que significa Odete para Swann? De que encanto o seduzido é presa, ele não sabe dizer. O sedutor é o que não revela. Mas revela alguma coisa ─o quê? ─ sobre o seduzido.


“Ai ioiô... eu nasci pra sofrer/fui olhar pra você, meus olhinhos fechou./ E quando os olhos eu abri/quis gritar, quis fugir/mas você, eu não sei por quê/você me chamou”... Que o seduzido está fascinado por alguma espécie de perigo, é certo. O risco mais óbvio seria o do abandono ─ “seduzido (a) e abandonado (a): não é assim que se diz? Mas ainda falta saber por que o abandono parece se inscrever sempre na experiência da sedução ─ e em que lugar tão ermo o seduzido é deixado, que lugar tão inóspito e este em que ele se sente como se estivesse sendo deixado para morrer.
A experiência da sedução é diferente da do apaixonamento ─ embora uma contenha a outra, e vice-versa! E bem mais diferente da experiência do amor que conta com a reciprocidade, com a entrega mútua onde dois caminham juntos por terrenos mais ou menos (mais no menos!) conhecidos O seduzido não sabe onde pisa─ e pensa que o sedutor sabe. Antecipa prazer e dor, pois, ao mesmo tempo em que espera o gozo prometido pelo sedutor, já sabe que se aproxima uma catástrofe. O seduzido é alguém que perde o rumo e tem que se guiar, nas brumas de uma infância revisitada, pela bússola do olhar sedutor.
Não se pode dizer que o seduzido ame o sedutor ─ ele é seu prisioneiro. Talvez odeie mais do que ame ─ “mas não deixo de querer conquistar/uma coisa qualquer em você/que será?” A conquista do sedutor é a esperança de libertação do seduzido, já que o sedutor parece possuir a chave dos enigmas que o aprisionam: o que você vê em mim que eu não vejo? O que você sabe de mim que eu não sei? O que você deseja em mim que eu não domino, ao mesmo tempo em que o seu olhar me diz que eu não possuo? Que dom seu olhar tem o poder de criar em mim para o seu desejo?
Escravidão da sedução: eu só possuo o dom para o seu desejo enquanto você o vê em mim. Sou eu escravo ─ou não sou nada. E o poeta seduzido suplica: ‘Oh minha amada que olhos os teus/quem dera um dia, quisesse Deus/eu visse um ida o olhar mendigo/ da poesia nos olhos teus” ─ sabendo que o olhar mendigo da poesia é o seu próprio; implorando a algum deus a graça de ver este olhar pedinte no rosto da amada, pois quem pede se revela: revela carência. Se o olhar da amada mendigasse, deixaria de ser inacessível, indecifrável, “ cais noturno cheios de adeus’. O poeta conhece o naufrágio da sedução."


(Do livro “O Olhar” Adauto Novaes)