quinta-feira, 12 de março de 2015

brincAR


Moro em condomínio. Num desses bem pitorescos que vendem a tal da qualidade de vida, onde crianças podem brincar tranquilamente nas ruas e estarão protegidas da violência lá de fora. Sim. Isso me deixa cheia de conflitos. Afinal, quando escolhemos morar dentro, aceitamos segregar. Segregar pessoas. Trabalhadores honestos. Os mesmos que viabilizam o sonho dos que se sentem “protegidos” lá (aqui) dentro.

Há poucos meses, questionei a administração por que razão empregadas domésticas e pedreiros precisam de antecedentes criminais para seus cadastros, e profissionais como arquitetos, engenheiros, etc...não (não precisam). Não são todos prestadores de serviço? Se a empregada doméstica precisa, o arquiteto também tem que ir atrás do seu. Não? Na verdade, nem um nem outro deveria precisar. A defesa da propriedade não pode justificar a violação dos direitos mais básicos de um trabalhador. Seja ele arquiteto, ou pedreiro. Por indignação, informei que não gostaria de pedir este documento à minha faxineira. E não pedi. Por indignação, mas acho que também para atenuar meus conflitos. Se eu consigo mudar pelo menos isso, minha passagem por condomínio terá valido a pena.

Mas é de outra coisa que eu quero falar. Outra que me inquieta tanto quanto: as ruas vazias de crianças brincando. Bem diferente dos slogans que vendem o paraíso. Onde elas estão? Dentro das casas? Nas aulas extras que enchem o período que não estão na escola? No computador? Na televisão? Quietinhas? Obedientes? Nas salas arrumadinhas? E onde será que elas gostariam de estar? Ou melhor, onde será que elas precisariam estar? É CLARO que brincando. E brincando muito. Na maior parte do tempo. Dentro de casa, fora, na rua, no quintal. Mas brincando. Fazendo barulho. Fazendo de conta. E com outras. Diariamente. E não só nos fins de semana, como fazem os adultos que esperam a semana toda por eles para ter lazer. Trabalho de criança é brincar. E é trabalho muito sério. Privar crianças disso também é violência.

A classe média fica indignada com o trabalho infantil. Defende que criança não pode trabalhar, que tem que brincar. Mas ela faz o mesmo quando não coloca o brincar como a coisa mais importante da vida dos seus filhos. Tão importante quanto todas as outras necessidades básicas, para um desenvolvimento saudável. Físico e emocional. Se uma criança precisa ter suas necessidades básicas bem atendidas para ter, por exemplo, um bom desempenho escolar (e com isso ninguém discorda), então ela também precisa brincar todo santo dia. É como comer. Brincar é necessidade básica.

A origem da palavra brincar é latina e vem de vinculum (laço, vínculo), passou a vinclu, vincru, vrinco e chegou a brinco. Li em algum lugar que brincos eram, na mitologia grega, pequenos deuses que ficavam voando em torno de Vênus, alegrando-a e enfeitando-a. Não consegui comprovar a veracidade dessa informação. Mas é interessante pensar que de vínculo passou a enfeite. Adorno. Que é exatamente o que tem acontecido com o brincar hoje. Ele vem como adorno, como prêmio. Depois que coisas consideradas mais importantes já foram garantidas (estudo, tarefas, aulas de línguas, música, esporte dirigido, etc, etc, etc....).

Nietzsche dizia que “o homem chega à sua maturidade quando encara a vida com a mesma seriedade que uma criança encara uma brincadeira”. Quando uma criança está brincando, algo de extrema relevância está acontecendo. É muito triste ver que a defesa desse direito pode vir a se tornar uma luta política. E mais triste ainda: uma luta diária da própria criança. Uma batalha. Ela precisa de muito pouco pra brincar. De tempo, de parceiros e da permissão do adulto. O resto, ela inventa.