segunda-feira, 6 de maio de 2013

Vovô Chico

Quando escutava alguém dizer “melhor idade” (para a terceira), ficava indignado. “Como assim melhor idade?”. Um dia escutou pior. Que haveria um concurso pra eleger a rainha do clube da melhor idade. Não se conteve. “O que????? Concurso pra rainha da melhor idade?????? RI-DÍ-CU-LO. Vcs só podem estar de brincadeira comigo!!!!”. Pedir a opinião dele, nem sempre era uma boa idéia. Porque ela seria dada meeeeeesmo. E muitas vezes, era preciso ser forte pra aguentar escutá-la. Porque, com certeza, ela viria na sua forma mais bruta, sem nenhum tratamento, sem nenhum tipo de disfarce. Mas podia acontecer também de ser gostoso escutá-las. A ênfase que ele dava quando dizia que alguma  coisa era “RI-DÍ-CU-LA”, era a mesma que dava quando gostava de outra. Daí era “A COI-SA MAIS LIN-DA DO MUN-DO!!!!”. Discussões com vizinhos que cortavam árvores, eu vi algumas. A gente até esperava o dia em que subiria numa delas pra evitar. E o dia em que um dos vizinhos (um que não queria árvore na porta da sua casa porque árvores sujam) parou o carro na sombra da nossa? Ele não acreditou naquilo. Tinha razão muitas vezes, mas acabava perdendo por conta da maneira intempestiva com que a defendia. Esse era o meu pai, que depois de 70 dias no hospital, 40 deles na uti, morreu na última sexta-feira. Foram dias muito difíceis pra todos nós. É como se a vida ficasse suspensa. Como se ficasse pra depois. Uma mistura de sentimentos. E muitas, mas muitas reflexões. Pensei muitas vezes, por exemplo, até que ponto a vida de alguém deve ser esticada graças a todos os recursos que o avanço tecnológico e da medicina permitem. É vida ou sofrimento que se estica? E a morte natural, o que é? O que passou a ser? Ao mesmo tempo, como era bom chegar na UTI na hora da visita e saber que mais um dia ele tinha dado conta de viver. Que não tinha ido embora. E o coma induzido (que hoje se diz sedação)? Será que ele podia nos escutar? Será que tinha dor e não conseguia expressar porque a sedação não permitia movimentos? Foi chegando a hora da extubação, mas pra isso precisaria da traqueostomia. Os movimentos e a consciência começariam então a voltar, mas daí era voz que não teria mais. Que alívio eu senti quando soube que havia medicamentos amnésicos para que ele não lembrasse depois, de tudo que estava vivendo ali. Seria muito traumático. Mas e então? Será que não sentiria dor se ficasse sem a sedação? Será que não ficaria triste? Desesperado? Quantas perguntas fizemos! Eram duas visitas por dia, de meia hora cada uma. Na primeira, o médico de plantão ia passando de leito em leito, pra dar às famílias o boletim do dia. Foram 40 dias. Foram 40 boletins. E minha mãe guerreira não perdeu nenhum. Não pulou nenhum dia de visita. Nenhunzinho. E todos os dias, conversava muito com ele. Estivesse dormindo ou não, sedado ou não. Explicava com a voz baixinha o que estava acontecendo. Fazia carinho, molhava os lábios dele, porque achava que podia estar com sede. E rezava com as mãos cheias de boas energias na testa dele. Rezava muito. Até uma "flor de maio" que ele gostava tanto e que nascia, religiosamente, no mês de maio no jardim da casa deles, ela levou de presente. Ele não foi uma pessoa fácil não. Era rebelde, intransigente, crítico demais. Foi ao longo dos anos, desiludindo-se com tudo. Com o futebol, com a política, com o homem, com a lógica do capitalismo, com os produtos cada vez mais descartáveis. Era um saudosista. Coisas boas, eram as antigas. Os opalas que teve, os LPs, as músicas... Mas da natureza nunca desistiu. Era incapaz de viver sem ela. Teria morrido muito antes, se não a tivesse por perto. Se não fossem os saguis que iam comer banana na mão dele, se não fossem os pássaros, as árvores todas, o gramado, o cheiro de terra. Também não ficava sem a oficina que ele mesmo construiu no fundo da casa. Passava horas ali, fazendo suas invenções. A última delas era um mini cortador de grama (que funcionaria de verdade) para o Gabriel que tinha pedido um de presente. Não deu tempo de dar o cortador. Não deu tempo de ver nascer a flor de maio nesse maio. Mas no próximo, elas vão nascer ainda mais bonitas. E vamos todos lembrar do quanto ele cuidou bem delas. E à sua maneira, de todos nós.