quarta-feira, 20 de abril de 2016

Winnicott, Piaget e democracia




WINNICOTT, PIAGET E DEMOCRACIA
(Alexandra Mello)



Trabalho apresentado como exigência para conclusão do curso de Extensão “Leituras Dirigidas da obra de D. W. Winnicott”, da Faculdade de Ciências Médicas e Escola de Extensão da Unicamp, ministrado pela  Profa. Dra. Eloisa Helena Rubello Valler Celeri


  
O objetivo deste trabalho é demonstrar a importância que Winnicott e Piaget dão ao ambiente, na primeira infância, para a formação de indivíduos capazes de constituir uma sociedade verdadeiramente democrática. Embora tenham percorrido caminhos bastante diferentes, há entre eles pontos que convergem no que diz respeito a essa conquista do ser humano.
Winnicott, ao tentar atribuir um significado psicológico ao termo democracia, sugere que uma sociedade verdadeiramente democrática é constituída por uma maioria de pessoas consideradas maduras do ponto de vista emocional. Para pensar numa sociedade democrática, portanto, é preciso pensar nos seus membros individualmente. Maturidade da sociedade sugere maturidade de uma proporção ideal de membros saudáveis. “A sociedade não passa de uma duplicação maciça de indivíduos” (Winnicott, 1986).
Para o autor, um indivíduo maduro é aquele que apresenta um grau satisfatório de desenvolvimento emocional compatível com sua idade cronológica e o meio em que vive. Haveria uma tendência inata e herdada em direção ao crescimento e ao amadurecimento, até que o indivíduo viesse a se sentir um ser inteiro. No entanto, esse desenvolvimento depende de um ambiente satisfatório, capaz de se adaptar às necessidades do bebê, fase em que está num estado de dependência absoluta, onde o que há, é a unidade mãe-bebê.
A mãe seria a pessoa mais indicada para assumir essa adaptação, em função de um estado que ela desenvolve no final da gravidez e nas primeiras semanas de vida do bebê, e que Winnicott chamou de preocupação materna primária. Essa “doença normal” permite a ela identificar-se com seu filho e assim, reconhecer e atender suas verdadeiras necessidades. No entanto, ele considera que outras pessoas sejam capazes de desenvolver essa capacidade de identificação com o bebê que permite a elas desempenhar essa função. Se essa adaptação acontece de forma suficientemente boa, o bebê pode continuar a ser, sem a necessidade de reagir a invasões do ambiente para as quais não está preparado. O desenvolvimento em direção à maturidade pode então prosseguir da maneira mais harmônica possível e a dependência absoluta vai dando lugar à dependência relativa, em que o bebê começa a desenvolver um sentido de realidade externa.
Nessa transição, deve ter início uma desadaptação gradual da mãe ao bebê, em que pequenas falhas suportáveis favoreçam o processo de desilusionamento. A realidade, até então subjetiva, começa a ser objetivamente percebida e, portanto, compartilhada. O objeto vai sendo agora colocado para fora da área do controle onipotente do bebê. Ele começa a perceber que o mundo criado por ele, já estava ali para ser criado. No entanto, a capacidade de ilusão permanece e possibilita o viver criativo, em que a criança desenvolve a confiança de que o mundo tem aquilo de que ele necessita ou deseja.  
Segundo Winnicott, o ser humano tem uma tendência natural a um padrão de vida democrático. Esta tendência, para ser atendida, depende do desenvolvimento emocional saudável do indivíduo, que por sua vez, depende de uma provisão ambiental adequada. Se uma sociedade tem uma proporção significativa de membros saudáveis, pode-se dizer que há, também nela, uma tendência inata em direção a um sistema democrático. A democracia seria, portanto, o resultado de um grupo de pessoas inteiras, que conseguem compartilhar a realidade.
Em qualquer sociedade ou comunidade, a tendência democrática inata pode ser comprometida em função da presença de indivíduos anti-sociais ou que têm uma tendência imatura a se identificar com a autoridade, para suprir uma insegurança interna. Winnicott considera que, em ambos os casos, a tendência anti-social está presente, só que de uma forma oculta nos membros que se identificam com a autoridade, de forma imatura. Em nenhum dos casos, portanto, pode-se falar em pessoas inteiras (verdadeiro self), já que toda a força conflitante permanece fora do indivíduo.
Há ainda, segundo Winnicott, os indivíduos que não se definiram. O autor sustenta que só uma proporção suficientemente grande de seres saudáveis pode ser capaz de influenciar o maior número dos ”indeterminados”, que seriam então, incorporados a eles. Só assim, a tendência democrática inata estaria garantida.
Para Winnicott, a tendência democrática não deve ser imposta a uma sociedade, mas deve nascer em ambientes que ele chamou de “bons lares comuns”. Os verdadeiros criadores da tendência democrática inata seriam então o homem e a mulher comuns, capazes de construir um lar saudável comum. A maior contribuição que uma mulher e um homem podem dar a uma sociedade, para que ela se torne autenticamente democrática, é construir famílias e bons lares comuns. A mãe, por meio da sua devoção e o pai, oferecendo proteção para que ela consiga ser suficientemente boa em sua tarefa. A maneira como todas as outras pessoas podem contribuir é não interferindo, ou interferirindo da forma menos invasiva possível na dinâmica natural deste arranjo.
O indivíduo maduro de Winnicott, capaz de governar a si próprio, é para Piaget, o indivíduo moralmente autônomo, contrário ao heterônomo, que é governado por outros. No livro “O Juízo Moral na Criança”, publicado em 1932, Piaget discorre sobre a importância da moralidade autônoma. Segundo o autor, toda criança nasce heterônoma e, em condições favoráveis, vai se tornando cada vez mais autônoma. No entanto, esta heteronomia natural é reforçada pelos adultos, o que faz com que o desenvolvimento rumo à autonomia seja interrompido. Esse reforço, normalmente, ocorre por meio de sanções como castigos e recompensas. Se ao contrário, as crianças são estimuladas a exercitar a troca de pontos de vista, conseguem construir por si mesmas os valores morais e tomar as próprias decisões.
No lugar das punições, Piaget defende as sanções por reciprocidade, em que é preciso tentar encontrar uma relação direta entre elas e o ato cometido que precisa ser sancionado. Este tipo de sanção, desde que utilizado num ambiente de afeto e respeito mútuo, motiva a criança a exercitar a coordenação de diferentes pontos de vista. Para o autor, a criança constrói os valores morais internamente, por meio da sua interação com o meio ambiente e não, por imposição, internalizando-os por meio da simples transmissão social.
Em sua concepção, autonomia moral é indissociável de autonomia intelectual e sanções punitivas também podem ser aplicadas nesse âmbito, dificultando que as crianças aprendam a pensar por si mesmas. É preferível possibilitar trocas de pontos de vista com outras crianças, ao invés de simplesmente corrigir os erros cometidos. Quando é corrigida, não tem a oportunidade de chegar ao resultado correto por meio de relações que ela própria estabelece, mas ao contrário, é levada a aceitar passivamente o que um outro sabe e quer lhe transmitir. Não há dessa forma, nenhuma possibilidade de construção.
Segundo Piaget, quando a criança é respeitada na sua maneira de pensar ou de sentir, é encorajada a estabelecer as relações necessárias ao desenvolvimento da autonomia, intelectual e moral. Para explicar seu raciocínio ao resolver um problema matemático, por exemplo, precisa encontrar maneiras de fazer com que o interlocutor entenda e isto certamente, enriquece o seu repertório. Se chegou a um resultado incorreto, ao tentar defender o caminho que percorreu, vai acabar convencida de que está errada.   
Tanto para Winnicott quanto para Piaget, há uma tendência natural no ser humano em direção ao autogoverno, desde que possa contar com um ambiente favorável. Para Winnicott, o indivíduo vai se tornando cada vez mais maduro emocionalmente e independente. Para Piaget, ele vai da heteronomia para a autonomia, tanto moral quanto intelectual. Embora não tenha focado os seus estudos no campo afetivo, Piaget sempre defendeu que há uma relação indissociável e complementar entre conhecimento e afetividade. Os aspectos cognitivos são para ele a estruturação das ações e os aspectos afetivos, a sua energética. Não é suficiente que o sujeito tenha condições para conhecer e aprender, é preciso que ele queira, que seja mobilizado para atingir um objetivo, por meio de uma ação, seja física ou mental.
Embora o objeto de estudo de Jean Piaget, tenha sido a construção do conhecimento pelo ser humano e não o seu desenvolvimento emocional, como em Winnicott, os dois autores parecem se encontrar quando pensam em que tipo de ser humano uma sociedade precisa ter, em sua maioria, para tornar-se autenticamente democrática. Encontram-se também, quando pensam na qualidade estruturante do ambiente da primeira infância, para que isso seja possível. Enquanto Winnicott fala em seres emocionalmente saudáveis, Piaget fala em seres moral e intelectualmente autônomos.
Outro ponto de convergência entre eles é o fato de defenderem que a interferência no processo natural de desenvolvimento do ser humano pode interrompê-lo em algum ponto, impedindo que chegue a alcançar a maturidade, para Winnicott, ou a autonomia, para Piaget.
Winnicott diz que a maior contribuição que a sociedade pode dar a um indivíduo e, portanto, a ela própria de tornar-se um sistema democrático autêntico, é não interferir na relação entre mãe e bebê e no lar comum.
Da mesma forma, Piaget defende que a criança precisa ter a oportunidade de construir internamente uma moralidade autônoma, assim como o conhecimento, no campo intelectual. É claro que uma parte desse conhecimento é social e depende que seja transmitido por outras pessoas, já que é resultado de convenções sociais. No entanto, há o momento certo para que isso seja feito. Um exemplo é o ensino da aritmética. As escolas, ainda hoje, tentam transmitir às crianças os algoritmos (conhecimento social), antes que ela tenha construído internamente noções essenciais a essa aprendizagem (conhecimento lógico matemático). Esta precipitação é uma forma de interferência que vai impedir a construção natural do conhecimento.
No âmbito da moralidade, esta interferência ocorre quando os adultos dizem às crianças o que é certo e o que é errado, ou o que devem ou não fazer, sem dar a ela a oportunidade de construir os próprios valores morais e a partir deles, fazer escolhas que levem em conta pontos de vista de outras pessoas. 
Pode-se concluir que para os dois autores, uma sociedade verdadeiramente democrática, em que a liberdade só é alcançada por meio do respeito mútuo, da cooperação entre pessoas inteiras e da confiança de que as regras deliberadas em grupo serão respeitadas, tem início muito cedo na infância e depende de um ambiente que seja facilitador e estruturante. Ao que parece, Winnicott e Piaget estão de acordo que um sistema democrático não deve ser imposto, mas consequência de uma conquista e de uma construção do ser humano.




BIBLIOGRAFIA


WINNICOOT, D.W. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
_________________ A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
_________________ O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médica, 1988.
_________________ Da pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.
_________________ Natureza Humana. Rio de Janeiro, Imago, 1990.
PIAGET, J. O Juízo Moral da criança. São Paulo: Summus, 1994.
LA TAILLE, Y. Moral e Ética: Dimensões intelectuais e afetivas. São Paulo: Artmed, 2006.
BRENELLI, R.P. Piaget e a afetividade. In: SISTO, F.F.; OLIVEIRA, G.C.; FINI, L.D.T. (orgs.). Leituras de Psicologia para formação de professores. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universidade São Francisco, 2000.