domingo, 1 de abril de 2012

De volta à Praça da República

1991. Eu tinha 23 anos e estava no terceiro ano da faculdade de Psicologia da PUC-SP. Deslumbrada com a liberdade que sente quem sai da casa dos pais no interior e começa a morar sozinha na capital, eu achava que mudaria o mundo. Só ainda não sabia como. Por onde começar. Até o dia em que recebi da Martinha, o convite irrecusável para quem tinha tal pretensão. A Martinha é uma daquelas amigas de quem a vida nos afasta, mas que basta um encontro pra se retomar ao ponto onde paramos, como se o espaço intermediário fosse apenas um detalhe. Aceitei o convite prontamente.

Dali em diante, eu teria o status de educadora de rua. “Suuuuper legal” para uma estudante de psicologia da PUC, para quem as experiências fora da sala de aula eram sempre bem mais vibrantes. Trabalharíamos, eu e mais três colegas, com os meninos de rua, moradores da Praça da República. Era um projeto da PUC, em parceria com a Secretaria do Bem Estar Social. Stela Graciani (que provavelmente, continua até hoje mudando o mundo), era a nossa coordenadora toda engajada, que nos levava aos eventos mais bacanas e nos apresentava às pessoas mais importantes daquele universo. Era o máximo ir a reuniões na OAB, nas secretarias municipais, com o Padre Julio Lancelotti, na polícia, na Pastoral do Menor ou em igrejas para reinvidicar espaços físicos para trabalhar. E, todos os dias, durante um ano, ir até a Praça da República para encontrar meninos e meninas de rua.

Alguns eram mais acessíveis. Outros, bem mais desconfiados. Não tínhamos muito claro o que da nossa presença ali traria algum resultado, e muito menos que resultado seria. Se eu era uma educadora de rua, a proposta era educá-los. Mas educá-los como? O que significava educar meninos de rua, na rua? Ou no coreto da praça, onde dormiam. Fazíamos grupos de estudo para ter estas respostas. Líamos sociólogos, antropólogos, psicólogos. Mas quando estávamos ali, na rua, com aquelas crianças tão desamparadas e, ao mesmo tempo, tão destemidas, é como se aquelas leituras todas não fizessem muito sentido. Aquela ferida social escancarada na nossa cara nos deixava confusos, esperançosos, amedrontados, desanimados, culpados, agradecidos. Tudo isso misturado, com momentos de maior e menor lucidez.

Talvez, estivéssemos tão perdidos quanto eles. Com uma diferen;a. Nós tínhamos cama quentinha. Comida farta à mesa. Família. E foi no calor da minha família que eu senti talvez a primeira grande dor pelo outro. Naquele momento, eu me dei conta do tamanho da solidão daquelas pessoas. Eu estava em Campinas, num fim de semana, jantando com os meus pais, quando veio a imagem de um dos meninos do coreto chorando sozinho, sentado num banco da praça, depois da festa de aniversário que fizemos para ele. Decoramos o coreto como se decora uma casa em dia de aniversário de criança. Bexigas, língua de sogra, docinhos, bolo, música. Todos os meninos foram convidados e foi uma festa linda. Mas algumas horas depois, a festa acabou e a dura realidade daquele menino de 8 anos (de quem eu me lembro perfeitamente) estava de volta. À noite, não me lembro por que razão, voltamos para a praça e lá estava ele, sentado no banco chorando baixinho. Quando, no meio do jantar farto, esta imagem veio à minha cabeça, eu sai chorando da mesa e fui para o meu quarto. Meu outro quarto. Eu tinha dois. Um em São Paulo e um em Campinas. Minha mãe foi atrás de mim, me abraçou forte e esperou que eu terminasse de chorar para perguntar o que havia acontecido. Eu dizia a ela que aquilo não podia de jeito nenhum existir. E que nosso trabalho era quase nada perto da miséria humana.

Os anos se passaram, eu não mudei o mundo e perdi muitas das certezas ingênuas que eu tinha naquele momento. Mas tenho uma que se torna cada vez mais inabalável, embora para muitos, seja tão ingênua quanto aquelas. A de que uma das melhores maneiras de mudar o mundo é criar filhos que sejam capazes de se sensibilizar com o drama do outro. E quando eu escuto o meu de 15 anos pedir pra ver de perto a Cracolândia e lá estando, percebo o quanto ele está tocado por aquilo, eu constato que alguma semente eu estou deixando para um mundo melhor lá na frente.

(O que me trouxe de volta todas estas lembranças foi o documentário produzido pelo Marco (para os poucos leitores não amigos, Marco é meu marido) e pelo Gustavo Costa, repórter “sem rosto” da TV Record. Por dois meses ficaram mergulhados nesse projeto que acaba de ser concluído e deve ir ao ar no Domingo Espetacular da Páscoa. Eu vi a versão maior, antes que tivesse que ser cortada, para se encaixar na programação. Ele ficou menor, mas ainda assim grandioso o bastante para nos causar espanto. E eu acredito que causar espanto seja mesmo o objetivo destes dois jornalistas. Além, é claro, de produzir um produto jornalístico de qualidade. Mais informações sobre o documentário, no DoLaDoDeLá)