WINNICOTT, PIAGET E
DEMOCRACIA
(Alexandra Mello)
Trabalho apresentado como exigência para conclusão do curso de
Extensão “Leituras Dirigidas da obra de D. W. Winnicott”, da Faculdade de Ciências
Médicas e Escola de Extensão da Unicamp, ministrado pela Profa. Dra. Eloisa Helena Rubello Valler
Celeri
O objetivo deste
trabalho é demonstrar a importância que Winnicott e Piaget dão ao ambiente, na
primeira infância, para a formação de indivíduos capazes de constituir uma
sociedade verdadeiramente democrática. Embora tenham percorrido caminhos
bastante diferentes, há entre eles pontos que convergem no que diz respeito a
essa conquista do ser humano.
Winnicott, ao tentar
atribuir um significado psicológico ao termo democracia, sugere que uma
sociedade verdadeiramente democrática é constituída por uma maioria de pessoas
consideradas maduras do ponto de vista emocional. Para pensar numa sociedade
democrática, portanto, é preciso pensar nos seus membros individualmente. Maturidade
da sociedade sugere maturidade de uma proporção ideal de membros saudáveis. “A
sociedade não passa de uma duplicação maciça de indivíduos” (Winnicott, 1986).
Para o autor, um
indivíduo maduro é aquele que apresenta um grau satisfatório de desenvolvimento
emocional compatível com sua idade cronológica e o meio em que vive. Haveria
uma tendência inata e herdada em direção ao crescimento e ao amadurecimento,
até que o indivíduo viesse a se sentir um ser inteiro. No entanto, esse
desenvolvimento depende de um ambiente satisfatório, capaz de se adaptar às
necessidades do bebê, fase em que está num estado de dependência absoluta, onde
o que há, é a unidade mãe-bebê.
A mãe seria a pessoa
mais indicada para assumir essa adaptação, em função de um estado que ela
desenvolve no final da gravidez e nas primeiras semanas de vida do bebê, e que
Winnicott chamou de preocupação materna primária. Essa “doença normal” permite
a ela identificar-se com seu filho e assim, reconhecer e atender suas
verdadeiras necessidades. No entanto, ele considera que outras pessoas sejam
capazes de desenvolver essa capacidade de identificação com o bebê que permite
a elas desempenhar essa função. Se essa adaptação acontece de forma
suficientemente boa, o bebê pode continuar a ser, sem a necessidade de reagir a
invasões do ambiente para as quais não está preparado. O desenvolvimento em
direção à maturidade pode então prosseguir da maneira mais harmônica possível e
a dependência absoluta vai dando lugar à dependência relativa, em que o bebê
começa a desenvolver um sentido de realidade externa.
Nessa transição, deve
ter início uma desadaptação gradual da mãe ao bebê, em que pequenas falhas
suportáveis favoreçam o processo de desilusionamento. A realidade, até então
subjetiva, começa a ser objetivamente percebida e, portanto, compartilhada. O
objeto vai sendo agora colocado para fora da área do controle onipotente do
bebê. Ele começa a perceber que o mundo criado por ele, já estava ali para ser
criado. No entanto, a capacidade de ilusão permanece e possibilita o viver
criativo, em que a criança desenvolve a confiança de que o mundo tem aquilo de
que ele necessita ou deseja.
Segundo Winnicott, o
ser humano tem uma tendência natural a um padrão de vida democrático. Esta
tendência, para ser atendida, depende do desenvolvimento emocional saudável do
indivíduo, que por sua vez, depende de uma provisão ambiental adequada. Se uma
sociedade tem uma proporção significativa de membros saudáveis, pode-se dizer
que há, também nela, uma tendência inata em direção a um sistema democrático. A
democracia seria, portanto, o resultado de um grupo de pessoas inteiras, que
conseguem compartilhar a realidade.
Em qualquer sociedade
ou comunidade, a tendência democrática inata pode ser comprometida em função da
presença de indivíduos anti-sociais ou que têm uma tendência imatura a se
identificar com a autoridade, para suprir uma insegurança interna. Winnicott
considera que, em ambos os casos, a tendência anti-social está presente, só que
de uma forma oculta nos membros que se identificam com a autoridade, de forma
imatura. Em nenhum dos casos, portanto, pode-se falar em pessoas inteiras
(verdadeiro self), já que toda a força conflitante permanece fora do indivíduo.
Há ainda, segundo
Winnicott, os indivíduos que não se definiram. O autor sustenta que só uma
proporção suficientemente grande de seres saudáveis pode ser capaz de
influenciar o maior número dos ”indeterminados”, que seriam então, incorporados
a eles. Só assim, a tendência democrática inata estaria garantida.
Para Winnicott, a
tendência democrática não deve ser imposta a uma sociedade, mas deve nascer em
ambientes que ele chamou de “bons lares comuns”. Os verdadeiros criadores da
tendência democrática inata seriam então o homem e a mulher comuns, capazes de construir
um lar saudável comum. A maior contribuição que uma mulher e um homem podem dar
a uma sociedade, para que ela se torne autenticamente democrática, é construir
famílias e bons lares comuns. A mãe, por meio da sua devoção e o pai,
oferecendo proteção para que ela consiga ser suficientemente boa em sua tarefa.
A maneira como todas as outras pessoas podem contribuir é não interferindo, ou
interferirindo da forma menos invasiva possível na dinâmica natural deste arranjo.
O indivíduo maduro de
Winnicott, capaz de governar a si próprio, é para Piaget, o indivíduo
moralmente autônomo, contrário ao heterônomo, que é governado por outros. No
livro “O Juízo Moral na Criança”, publicado em 1932, Piaget discorre sobre a
importância da moralidade autônoma. Segundo o autor, toda criança nasce
heterônoma e, em condições favoráveis, vai se tornando cada vez mais autônoma.
No entanto, esta heteronomia natural é reforçada pelos adultos, o que faz com
que o desenvolvimento rumo à autonomia seja interrompido. Esse reforço,
normalmente, ocorre por meio de sanções como castigos e recompensas. Se ao
contrário, as crianças são estimuladas a exercitar a troca de pontos de vista,
conseguem construir por si mesmas os valores morais e tomar as próprias
decisões.
No lugar das punições,
Piaget defende as sanções por reciprocidade, em que é preciso tentar encontrar
uma relação direta entre elas e o ato cometido que precisa ser sancionado. Este
tipo de sanção, desde que utilizado num ambiente de afeto e respeito mútuo,
motiva a criança a exercitar a coordenação de diferentes pontos de vista. Para
o autor, a criança constrói os valores morais internamente, por meio da sua
interação com o meio ambiente e não, por imposição, internalizando-os por meio
da simples transmissão social.
Em sua concepção, autonomia
moral é indissociável de autonomia intelectual e sanções punitivas também podem
ser aplicadas nesse âmbito, dificultando que as crianças aprendam a pensar por
si mesmas. É preferível possibilitar trocas de pontos de vista com outras
crianças, ao invés de simplesmente corrigir os erros cometidos. Quando é
corrigida, não tem a oportunidade de chegar ao resultado correto por meio de
relações que ela própria estabelece, mas ao contrário, é levada a aceitar
passivamente o que um outro sabe e quer lhe transmitir. Não há dessa forma,
nenhuma possibilidade de construção.
Segundo Piaget, quando
a criança é respeitada na sua maneira de pensar ou de sentir, é encorajada a
estabelecer as relações necessárias ao desenvolvimento da autonomia,
intelectual e moral. Para explicar seu raciocínio ao resolver um problema matemático,
por exemplo, precisa encontrar maneiras de fazer com que o interlocutor entenda
e isto certamente, enriquece o seu repertório. Se chegou a um resultado
incorreto, ao tentar defender o caminho que percorreu, vai acabar convencida de
que está errada.
Tanto para Winnicott quanto para Piaget, há uma tendência
natural no ser humano em direção ao autogoverno, desde que possa contar com um
ambiente favorável. Para Winnicott, o indivíduo vai se tornando cada vez mais
maduro emocionalmente e independente. Para Piaget, ele vai da heteronomia para
a autonomia, tanto moral quanto intelectual. Embora não tenha focado os seus
estudos no campo afetivo, Piaget sempre defendeu que há uma relação
indissociável e complementar entre conhecimento e afetividade. Os aspectos
cognitivos são para ele a estruturação das ações e os aspectos afetivos, a sua
energética. Não é suficiente que o sujeito tenha condições para conhecer e
aprender, é preciso que ele queira, que seja mobilizado para atingir um
objetivo, por meio de uma ação, seja física ou mental.
Embora o objeto de
estudo de Jean Piaget, tenha sido a construção do conhecimento pelo ser humano
e não o seu desenvolvimento emocional, como em Winnicott, os dois autores
parecem se encontrar quando pensam em que tipo de ser humano uma sociedade
precisa ter, em sua maioria, para tornar-se autenticamente democrática.
Encontram-se também, quando pensam na qualidade estruturante do ambiente da
primeira infância, para que isso seja possível. Enquanto Winnicott fala em
seres emocionalmente saudáveis, Piaget fala em seres moral e intelectualmente
autônomos.
Outro ponto de
convergência entre eles é o fato de defenderem que a interferência no processo
natural de desenvolvimento do ser humano pode interrompê-lo em algum ponto,
impedindo que chegue a alcançar a maturidade, para Winnicott, ou a autonomia,
para Piaget.
Winnicott diz que a
maior contribuição que a sociedade pode dar a um indivíduo e, portanto, a ela
própria de tornar-se um sistema democrático autêntico, é não interferir na
relação entre mãe e bebê e no lar comum.
Da mesma forma, Piaget
defende que a criança precisa ter a oportunidade de construir internamente uma
moralidade autônoma, assim como o conhecimento, no campo intelectual. É claro
que uma parte desse conhecimento é social e depende que seja transmitido por
outras pessoas, já que é resultado de convenções sociais. No entanto, há o
momento certo para que isso seja feito. Um exemplo é o ensino da aritmética. As
escolas, ainda hoje, tentam transmitir às crianças os algoritmos (conhecimento
social), antes que ela tenha construído internamente noções essenciais a essa
aprendizagem (conhecimento lógico matemático). Esta precipitação é uma forma de
interferência que vai impedir a construção natural do conhecimento.
No âmbito da
moralidade, esta interferência ocorre quando os adultos dizem às crianças o que
é certo e o que é errado, ou o que devem ou não fazer, sem dar a ela a
oportunidade de construir os próprios valores morais e a partir deles, fazer
escolhas que levem em conta pontos de vista de outras pessoas.
Pode-se concluir que para
os dois autores, uma sociedade verdadeiramente democrática, em que a liberdade só
é alcançada por meio do respeito mútuo, da cooperação entre pessoas inteiras e da
confiança de que as regras deliberadas em grupo serão respeitadas, tem início muito
cedo na infância e depende de um ambiente que seja facilitador e estruturante. Ao
que parece, Winnicott e Piaget estão de acordo que um sistema democrático não deve
ser imposto, mas consequência de uma conquista e de uma construção do ser
humano.
BIBLIOGRAFIA
WINNICOOT, D.W. Tudo
começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
_________________ A
família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
_________________ O
ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médica, 1988.
_________________ Da
pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.
_________________
Natureza Humana. Rio de Janeiro, Imago, 1990.
PIAGET, J. O Juízo
Moral da criança. São Paulo: Summus, 1994.
LA TAILLE, Y. Moral e
Ética: Dimensões intelectuais e afetivas. São Paulo: Artmed, 2006.
BRENELLI, R.P. Piaget e
a afetividade. In: SISTO, F.F.; OLIVEIRA, G.C.; FINI, L.D.T. (orgs.). Leituras
de Psicologia para formação de professores. Petrópolis: Vozes; Bragança
Paulista: Universidade São Francisco, 2000.
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