quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Maria Rita Kehl

A psicanalista Maria Rita Kehl foi mesmo demitida do jornal O Estado de São Paulo, onde era colunista desde fevereiro deste ano. O motivo teria sido a coluna publicada um dia antes do primeiro turno, em que comenta a decisão editorial do jornal de apoiar a candidatura de José Serra à Presidência e faz uma análise sobre a "desqualificação" dos votos dos mais pobres. (http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20101002/not_imp618576,0.php)

O trecho abaixo é de um dos belíssimos ensaios desta, que é uma das nossas mais brilhantes intelectuais e que o Estadão acaba de perder. A sua liberdade de se expressar pode ter sido confrontada, mas não a nossa de acompanhá-la. Eu tive o privilégio de participar de um grupo de estudos em psicanálise, supervisionado por ela, quando estava no quarto ano de faculdade. Desde então, nunca mais a perdi de vista.


"Masculino/Feminino: O Olhar da Sedução
Maria Rita Kehl

O que se diz de imediato sobre a sedução é que é um jogo. Caçada silenciosa entre dois olhares; captura numa rede perigosa de palavras. Jogo arriscado e fascinante ─ angústia e gozo ─ onde o vencedor não sabe o que fazer de seu troféu e o perdedor só abe que perdeu seu rumo; um jogo cuja única possibilidade de empate se chama amor.
Essa abordagem parte do ponto de vista do aparente perdedor ─ o seduzido─ já que é ele quem nos deixa registro sobre sua experiência. É o seduzido que se expressa ─ na poesia, na literatura, nos consultórios de psicanálise. É o seduzido que tenta compreender a transformação que se deu nele ao mesmo tempo em que tenta entender o poder do olhar sedutor. O que significa Odete para Swann? De que encanto o seduzido é presa, ele não sabe dizer. O sedutor é o que não revela. Mas revela alguma coisa ─o quê? ─ sobre o seduzido.


“Ai ioiô... eu nasci pra sofrer/fui olhar pra você, meus olhinhos fechou./ E quando os olhos eu abri/quis gritar, quis fugir/mas você, eu não sei por quê/você me chamou”... Que o seduzido está fascinado por alguma espécie de perigo, é certo. O risco mais óbvio seria o do abandono ─ “seduzido (a) e abandonado (a): não é assim que se diz? Mas ainda falta saber por que o abandono parece se inscrever sempre na experiência da sedução ─ e em que lugar tão ermo o seduzido é deixado, que lugar tão inóspito e este em que ele se sente como se estivesse sendo deixado para morrer.
A experiência da sedução é diferente da do apaixonamento ─ embora uma contenha a outra, e vice-versa! E bem mais diferente da experiência do amor que conta com a reciprocidade, com a entrega mútua onde dois caminham juntos por terrenos mais ou menos (mais no menos!) conhecidos O seduzido não sabe onde pisa─ e pensa que o sedutor sabe. Antecipa prazer e dor, pois, ao mesmo tempo em que espera o gozo prometido pelo sedutor, já sabe que se aproxima uma catástrofe. O seduzido é alguém que perde o rumo e tem que se guiar, nas brumas de uma infância revisitada, pela bússola do olhar sedutor.
Não se pode dizer que o seduzido ame o sedutor ─ ele é seu prisioneiro. Talvez odeie mais do que ame ─ “mas não deixo de querer conquistar/uma coisa qualquer em você/que será?” A conquista do sedutor é a esperança de libertação do seduzido, já que o sedutor parece possuir a chave dos enigmas que o aprisionam: o que você vê em mim que eu não vejo? O que você sabe de mim que eu não sei? O que você deseja em mim que eu não domino, ao mesmo tempo em que o seu olhar me diz que eu não possuo? Que dom seu olhar tem o poder de criar em mim para o seu desejo?
Escravidão da sedução: eu só possuo o dom para o seu desejo enquanto você o vê em mim. Sou eu escravo ─ou não sou nada. E o poeta seduzido suplica: ‘Oh minha amada que olhos os teus/quem dera um dia, quisesse Deus/eu visse um ida o olhar mendigo/ da poesia nos olhos teus” ─ sabendo que o olhar mendigo da poesia é o seu próprio; implorando a algum deus a graça de ver este olhar pedinte no rosto da amada, pois quem pede se revela: revela carência. Se o olhar da amada mendigasse, deixaria de ser inacessível, indecifrável, “ cais noturno cheios de adeus’. O poeta conhece o naufrágio da sedução."


(Do livro “O Olhar” Adauto Novaes)

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