terça-feira, 4 de junho de 2013

Normal, anormal ou doença?




- Quer ouvir o meu projeto? segredou o menino sardento.
- Ah, sim. Ia-me esquecendo. Acabe depressa.
- Eu vou principiar. Olhe a minha cara. Está cheia de manchas, não está?
- Para dizer a verdade, está.
- É feia demais assim?
- Não é muito bonita, não.
- Vá lá. Nem feia nem bonita. É uma cara.
- É. Uma cara assim assim. Tenho visto nas poças d'água. O meu projeto é este: podíamos obrigar toda a gente a ter manchas no rosto. Não ficava bom?
- Para quê?
- Ficava mais certo, ficava tudo igual.

(A Terra dos Meninos Pelados. Graciliano Ramos)

 


Uma criança de 12 anos vai a uma sessão de psicoterapia da irmã mais velha, a pedido da psicóloga. Ao final da sessão, ela (a psicóloga) chama a mãe para dizer que seu filho é hiperativo e pergunta se ninguém havia lhe dito isto antes. A mãe diz que não e então ela encaminha a criança a um colega psiquiatra, em quem diz confiar muito. Os pais, preocupados com o diagnóstico dado, marcam a consulta e levam o filho alguns dias depois, quando o médico já tem em mãos um relatório daquela psicóloga, onde é provável que tenha o diagnóstico de hiperatividade. Provável, porque os pais não tiveram acesso a este documento e, portanto, não conhecem o seu conteúdo. O psiquiatra conversa com os dois e observa a criança enquanto dura a consulta. Isto parece ser o suficiente para que confirme o diagnóstico. Entrega a eles uma receita de “concerta”, estimulante do sistema nervoso central que é utilizado para o tratamento do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), embora o mecanismo de ação terapêutica neste transtorno não seja conhecido, e pede que retornem 15 dias depois para que possam definir um possível aumento da dosagem.

A coordenadora da escola, considerando precipitado o diagnóstico dado pela psicóloga e confirmado pelo psiquiatra, sugere a esta mãe que procure um outro profissional, antes de iniciar a medicação. A mãe, confusa com a divergência de opiniões, aceita a sugestão e vem ao meu consultório. Proponho a ela que não medique o filho até que eu conclua a minha avaliação, que incluiria visita à escola para conversar com professores, anamnese com os pais e algumas sessões individuais com o garoto. Ela diz que me daria um retorno depois de conversar com o marido. Algumas semanas depois, telefona dizendo que resolveram tentar o tratamento com o psiquiatra. Enquanto isso, a coordenadora da escola, com a anuência da mãe, decide ir aos consultórios dos dois profissionais para escutá-los. Ambos confirmam o diagnóstico.  Não se teve acesso  a nenhum laudo dos profissionais. Apenas a alguns relatórios de professores que haviam sido levados pela mãe na primeira consulta com o psiquiatra. Neles, é consenso que o aluno é bastante agitado em sala de aula. No entanto, segundo a coordenação, nenhum dos professores havia se queixado ou pedido que o aluno fosse encaminhado a um especialista.  

Geralmente, a família procura estes profissionais quando a escola faz o encaminhamento, por não saber mais como lidar com um aluno, em função de comportamento agitado, desatento, indisciplinado. Não foi o caso. O que dá mais credibilidade a esta escola. Demonstra que dá conta da diversidade de alunos que possui, sem ter a expectativa de que todos sejam bem comportados, obedientes e adaptados.

A psicóloga deu o diagnóstico de hiperatividade, em função do comportamento do garoto, naquele curto espaço de tempo, dentro das quatro paredes do seu consultório. O psiquiatra confirmou o diagnóstico pela mesma razão e após ler o encaminhamento da psicóloga e os relatórios dos professores.

É muito provável que esta criança preencha os critérios do DSM IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de transtornos Mentais) para TDAH. Ou seja, é possível que apresente os seis ou mais (dos nove) sintomas de desatenção e/ou hiperatividade necessários para a confirmação do diagnóstico, segundo este manual (alguns deles poderiam ser considerados o mesmo). Ainda segundo o DSM, é necessário que estes sintomas persistam “por pelo menos seis meses, em grau mal-adaptativo e inconsistente com o nível de desenvolvimento”. É preciso ainda que algum prejuízo causado por eles esteja presente em dois ou mais contextos e “deve haver claras evidências de prejuízo clinicamente significativo no funcionamento social, acadêmico ou ocupacional”. Será que estes dois profissionais tiveram tempo para assegurar todas essas condições?

A avaliação da conduta de uma criança por um psiquiatra é sempre solicitada por alguém, que não ela mesma. Alguém para quem tal conduta não é adequada. O psiquiatra, diante dela, precisa avaliar seu caráter patológico ou normal. E para isso, não pode ignorar o contexto ambiental em que a criança está inserida (escola, casa, rua, instituição religiosa, etc.).

Na Psiquiatria Infantil, é muito mais difícil estabelecer possíveis relações entre condutas e patologia do que na Psiquiatria Adulta. A criança está em pleno desenvolvimento, e as oscilações entre equilíbrio e descompensações estão presentes, sem que isto tenha necessariamente um caráter patológico. Desta maneira, os sintomas deveriam ser pensados mais em termos do seu efeito organizador ou não para o desenvolvimento da criança do que em termos de normalidade ou patologia. Quando apenas se considera a descrição dos sintomas para se definir o tratamento, corre-se o risco de, removendo-os, eliminar também os benefícios do papel organizador que por ventura eles possam ter.

Muitas vezes uma conduta considerada patológica pode ser uma maneira saudável de protesto ou um sinal de patologia do próprio meio. Uma conduta inabitual pode ainda ter sentidos diferentes dependendo do meio em que ela aparece. Uma mesma conduta pode ser facilmente tolerada por uma família mais flexível, que consegue sem tanto esforço dar conta dela, enquanto para uma outra mais rígida com a educação dos filhos, seria razão para preocupação e busca de ajuda profissional. Da mesma forma, uma família desorganizada e desestruturada pode contribuir para que uma conduta, que teria papel organizador, torne-se patológica.

No campo da psiquiatria, a dicotomia simplista – normal/patológico - deve ser ainda mais evitada do que na medicina somática, já que questões éticas, educacionais, sociais, culturais, religiosas, políticas, entre outras, estão mais fortemente presentes. No caso da Psiquiatria Infantil, esta simplificação pode trazer consequências mais irreparáveis,  por tratar de uma fase da vida em que o psiquismo da criança precisa dar conta dos processos maturacionais, bem como dos processos de desenvolvimento, que envolvem uma série de conflitos inevitáveis e bem-vindos. Estes conflitos podem ser tratados de maneira irresponsável e precipitada como sintomas de patologias a serem curadas.

“Neste estádio, a saúde não é uma ausência de sintomatologia. A normalidade deve ser definida sobre uma base muito mais ampla, que leve em consideração os conflitos essenciais, na sua maior parte inconscientes, que fazem parte da saúde, indicando apenas que a criança permanece viva e vivaz.” (Winnicott, 1988).

A ausência aparente de condutas desviantes no sentido de uma média estatística ou de um ideal a ser atingido, pode refletir uma submissão a pressões do meio por intermédio de comportamentos adaptativos. No entanto, este conformismo pode inviabilizar uma organização psíquica sólida que permita a elaboração dos conflitos previstos nesta fase. Pode-se, a partir disto, questionar-se por que razão há uma predominância de mulheres nos consultórios psiquiátricos, ao contrário do que ocorre na Psiquiatria Infantil, onde a predominância é de crianças do sexo masculino. Esta alternância permite especular que a clientela adulta não é a mesma que frequentou os consultórios psiquiátricos na infância. Será que isto pode ser atribuído à eficácia do tratamento psiquiátrico infantil? Ou será que meninas adaptam-se melhor ao meio, ao contrário dos meninos que confrontam os modelos ideais impostos por uma sociedade que precisa funcionar com a maior eficiência e eficácia possíveis, não permitindo que as pessoas tenham tempo para viver seus lutos, suas angústias e seus conflitos, que bem elaborados só trariam benefícios psíquicos? E resistindo às imposições e repressões, eles teriam mais sucesso em fazer bom emprego dos conflitos organizadores? (Ajuriaguerra; Marcelli, 1986).


...que a experiência de frustrações, de desapontamentos, da perda daquilo que é amado, junto com a tomada de consciência da insignificância e da fraqueza pessoais, formam uma parte significativa da educação de uma criança; e que, certamente, a educação deveria ter como objetivo de grande importância tornar a criança capaz de sair-se bem na vida sem ajuda. (WINNICOTT, 1988: p. 71).

 
O psiquiatra do caso acima relatado que, rapidamente, diagnostica o comportamento daquela criança, aproxima-se mais dos profissionais da medicina somática que se preocupam mais em remover o sintoma do que em compreender que sentido ele tem. Ele adota o ponto de vista que define o anormal como oposto à saúde e, portanto, indício de uma patologia a ser curada por um medicamento. Neste caso em questão, não havia sequer uma queixa que incapacitasse a criança ou perturbasse o ambiente familiar ou escolar. Ao fazer esta opção, o psiquiatra abre mão do que deveria ser um dos seus principais recursos: a escuta.

Para Winnicott, a anormalidade está mais associada a uma limitação da criança em fazer bom uso do sintoma para se defender das angústias e conflitos previstos no desenvolvimento, do que à presença dele.

 
O psiquiatra não é portanto, um curador de sintomas; ele reconhece o sintoma como um sinal de socorro que justifica uma investigação completa da história do desenvolvimento emocional da criança, relativo ao seu meio ambiente e a sua cultura. A finalidade do tratamento é aliviar a criança da necessidade de enviar o sinal de socorro. (WINNICOTT, 1988: p. 212).

 
Canguilhem (1904) afirma que o patológico é anormal, mas o anormal pode não ser patológico (pathos, que implica sofrimento), e sim adaptativo. Para Winnicott, as fobias da infância e os comportamentos de ruptura na adolescência caracterizam-nas como normalmente patológicas. E patologicamente normais seriam, por exemplo, os filhos hipermaturos de pais psicóticos. Estes autores demonstram a complexidade para definir conceitos como normalidade, anormalidade e patologia e a impossibilidade de estabelecer fronteiras entre estes estados.

 
deve-se então reconhecer o sintoma, avaliar seu peso e função dinâmica, tentar situar seu lugar no seio da estrutura e, enfim, apreciar essa estrutura no âmbito da evolução genética e no seio do ambiente. É dessa quádrupla avaliação sintomática, estrutural, genética e ambiental que procede todo procedimento psiquiátrico. (AJURIAGUERRA; MARCELLI, 1986: p. 49).

 
O que aqueles profissionais sabiam daquela criança que tão facilmente diagnosticaram? O que sabiam da escola daquela criança, daquela criança na escola, daquela criança com os pais, dos pais daquela criança? De como ela se desenvolve, do que sente, do que faz e o que sonha? Das qualidades que ela tem, das reações que o meio provoca nela, de como ela brinca com os amigos, de como é quando não está agitada num consultório com pessoas desconhecidas? O que investigaram e o que compreenderam sobre o que aquele comportamento agitado podia estar querendo dizer? Que hipóteses levantaram? Que respostas não tiveram e que tempo esperaram pra encontrá-las? O que conheceram dela? Parece que quase nada. Não teriam tido tempo. Mas mesmo tendo conhecido tão pouco dela, identificaram uma patologia a ser tratada. E é provável que saibam muito bem descrevê-la. E rapidamente querem curar a criança que não conhecem. Enquadrá-la na média estatística ou num modelo ideal imposto por uma sociedade que precisa de seres conformados e adaptados (o que acaba coincidindo com a média estatística). Querem que ela seja a criança fácil, conformada, silenciosa. A que não dá trabalho aos professores, que não os questiona, que não os desafia. Querem consertá-la. Ou melhor, conCertá-la. E quem está fazendo isto com as crianças é justamente aqueles que deveriam protegê-las dos estigmas e das pressões. Elas não têm autonomia e vão para onde são levadas, correndo o risco de se tornarem aquilo que outros vêem nelas e sabem delas. Sem conhecê-las.