- Quer ouvir
o meu projeto? segredou o menino sardento.
- Ah, sim. Ia-me esquecendo. Acabe depressa.
- Eu vou principiar. Olhe a minha cara. Está cheia de manchas, não está?
- Para dizer a verdade, está.
- É feia demais assim?
- Não é muito bonita, não.
- Vá lá. Nem feia nem bonita. É uma cara.
- É. Uma cara assim assim. Tenho visto nas poças d'água. O meu projeto é este: podíamos obrigar toda a gente a ter manchas no rosto. Não ficava bom?
- Para quê?
- Ficava mais certo, ficava tudo igual.
- Ah, sim. Ia-me esquecendo. Acabe depressa.
- Eu vou principiar. Olhe a minha cara. Está cheia de manchas, não está?
- Para dizer a verdade, está.
- É feia demais assim?
- Não é muito bonita, não.
- Vá lá. Nem feia nem bonita. É uma cara.
- É. Uma cara assim assim. Tenho visto nas poças d'água. O meu projeto é este: podíamos obrigar toda a gente a ter manchas no rosto. Não ficava bom?
- Para quê?
- Ficava mais certo, ficava tudo igual.
(A Terra dos Meninos Pelados.
Graciliano Ramos)
Uma
criança de 12 anos vai a uma sessão de psicoterapia da irmã mais velha, a
pedido da psicóloga. Ao final da sessão, ela (a psicóloga) chama a mãe para
dizer que seu filho é hiperativo e pergunta se ninguém havia lhe dito isto
antes. A mãe diz que não e então ela encaminha a criança a um colega
psiquiatra, em quem diz confiar muito. Os pais, preocupados com o diagnóstico
dado, marcam a consulta e levam o filho alguns dias depois, quando o médico já
tem em mãos um relatório daquela psicóloga, onde é provável que tenha o diagnóstico
de hiperatividade. Provável, porque os pais não tiveram acesso a este documento
e, portanto, não conhecem o seu conteúdo. O psiquiatra conversa com os dois e
observa a criança enquanto dura a consulta. Isto parece ser o suficiente para
que confirme o diagnóstico. Entrega a eles uma receita de “concerta”,
estimulante do sistema nervoso central que é utilizado para o tratamento do
transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), embora o mecanismo de
ação terapêutica neste transtorno não seja conhecido, e pede que retornem 15
dias depois para que possam definir um possível aumento da dosagem.
A
coordenadora da escola, considerando precipitado o diagnóstico dado pela
psicóloga e confirmado pelo psiquiatra, sugere a esta mãe que procure um outro
profissional, antes de iniciar a medicação. A mãe, confusa com a divergência de
opiniões, aceita a sugestão e vem ao meu consultório. Proponho a ela que não
medique o filho até que eu conclua a minha avaliação, que incluiria visita à
escola para conversar com professores, anamnese com os pais e algumas sessões individuais
com o garoto. Ela diz que me daria um retorno depois de conversar com o marido.
Algumas semanas depois, telefona dizendo que resolveram tentar o tratamento com
o psiquiatra. Enquanto isso, a coordenadora da escola, com a anuência da mãe, decide
ir aos consultórios dos dois profissionais para escutá-los. Ambos confirmam o
diagnóstico. Não se teve acesso a nenhum laudo dos profissionais. Apenas a
alguns relatórios de professores que haviam sido levados pela mãe na primeira
consulta com o psiquiatra. Neles, é consenso que o aluno é bastante agitado em
sala de aula. No entanto, segundo a coordenação, nenhum dos professores havia se
queixado ou pedido que o aluno fosse encaminhado a um especialista.
Geralmente,
a família procura estes profissionais quando a escola faz o encaminhamento, por
não saber mais como lidar com um aluno, em função de comportamento agitado,
desatento, indisciplinado. Não foi o caso. O que dá mais credibilidade a esta
escola. Demonstra que dá conta da diversidade de alunos que possui, sem ter a
expectativa de que todos sejam bem comportados, obedientes e adaptados.
A
psicóloga deu o diagnóstico de hiperatividade, em função do comportamento do
garoto, naquele curto espaço de tempo, dentro das quatro paredes do seu
consultório. O psiquiatra confirmou o diagnóstico pela mesma razão e após ler o
encaminhamento da psicóloga e os relatórios dos professores.
É muito
provável que esta criança preencha os critérios do DSM IV (Manual Diagnóstico e
Estatístico de transtornos Mentais) para TDAH. Ou seja, é possível que
apresente os seis ou mais (dos nove) sintomas de desatenção e/ou hiperatividade
necessários para a confirmação do diagnóstico, segundo este manual (alguns
deles poderiam ser considerados o mesmo). Ainda segundo o DSM, é necessário que
estes sintomas persistam “por pelo menos seis meses, em grau mal-adaptativo e
inconsistente com o nível de desenvolvimento”. É preciso ainda que algum
prejuízo causado por eles esteja presente em dois ou mais contextos e “deve
haver claras evidências de prejuízo clinicamente significativo no funcionamento
social, acadêmico ou ocupacional”. Será que estes dois profissionais tiveram
tempo para assegurar todas essas condições?
A
avaliação da conduta de uma criança por um psiquiatra é sempre solicitada por
alguém, que não ela mesma. Alguém para quem tal conduta não é adequada. O
psiquiatra, diante dela, precisa avaliar seu caráter patológico ou normal. E
para isso, não pode ignorar o contexto ambiental em que a criança está inserida
(escola, casa, rua, instituição religiosa, etc.).
Na
Psiquiatria Infantil, é muito mais difícil estabelecer possíveis relações entre
condutas e patologia do que na Psiquiatria Adulta. A criança está em pleno
desenvolvimento, e as oscilações entre equilíbrio e descompensações estão
presentes, sem que isto tenha necessariamente um caráter patológico. Desta
maneira, os sintomas deveriam ser pensados mais em termos do seu efeito
organizador ou não para o desenvolvimento da criança do que em termos de
normalidade ou patologia. Quando apenas se considera a descrição dos sintomas
para se definir o tratamento, corre-se o risco de, removendo-os, eliminar
também os benefícios do papel organizador que por ventura eles possam ter.
Muitas
vezes uma conduta considerada patológica pode ser uma maneira saudável de
protesto ou um sinal de patologia do próprio meio. Uma conduta inabitual pode
ainda ter sentidos diferentes dependendo do meio em que ela aparece. Uma mesma
conduta pode ser facilmente tolerada por uma família mais flexível, que
consegue sem tanto esforço dar conta dela, enquanto para uma outra mais rígida
com a educação dos filhos, seria razão para preocupação e busca de ajuda
profissional. Da mesma forma, uma família desorganizada e desestruturada pode
contribuir para que uma conduta, que teria papel organizador, torne-se
patológica.
No campo
da psiquiatria, a dicotomia simplista – normal/patológico - deve ser ainda mais
evitada do que na medicina somática, já que questões éticas, educacionais,
sociais, culturais, religiosas, políticas, entre outras, estão mais fortemente
presentes. No caso da Psiquiatria Infantil, esta simplificação pode trazer
consequências mais irreparáveis, por tratar
de uma fase da vida em que o psiquismo da criança precisa dar conta dos
processos maturacionais, bem como dos processos de desenvolvimento, que
envolvem uma série de conflitos inevitáveis e bem-vindos. Estes conflitos podem
ser tratados de maneira irresponsável e precipitada como sintomas de patologias
a serem curadas.
“Neste
estádio, a saúde não é uma ausência de sintomatologia. A normalidade deve ser
definida sobre uma base muito mais ampla, que leve em consideração os conflitos
essenciais, na sua maior parte inconscientes, que fazem parte da saúde,
indicando apenas que a criança permanece viva e vivaz.” (Winnicott, 1988).
A
ausência aparente de condutas desviantes no sentido de uma média estatística ou
de um ideal a ser atingido, pode refletir uma submissão a pressões do meio por
intermédio de comportamentos adaptativos. No entanto, este conformismo pode
inviabilizar uma organização psíquica sólida que permita a elaboração dos
conflitos previstos nesta fase. Pode-se, a partir disto, questionar-se por que
razão há uma predominância de mulheres nos consultórios psiquiátricos, ao
contrário do que ocorre na Psiquiatria Infantil, onde a predominância é de
crianças do sexo masculino. Esta alternância permite especular que a clientela
adulta não é a mesma que frequentou os consultórios psiquiátricos na infância.
Será que isto pode ser atribuído à eficácia do tratamento psiquiátrico
infantil? Ou será que meninas adaptam-se melhor ao meio, ao contrário dos
meninos que confrontam os modelos ideais impostos por uma sociedade que precisa
funcionar com a maior eficiência e eficácia possíveis, não permitindo que as
pessoas tenham tempo para viver seus lutos, suas angústias e seus conflitos,
que bem elaborados só trariam benefícios psíquicos? E resistindo às imposições
e repressões, eles teriam mais sucesso em fazer bom emprego dos conflitos
organizadores? (Ajuriaguerra; Marcelli, 1986).
...que
a experiência de frustrações, de desapontamentos, da perda daquilo que é amado,
junto com a tomada de consciência da insignificância e da fraqueza pessoais,
formam uma parte significativa da educação de uma criança; e que, certamente, a
educação deveria ter como objetivo de grande importância tornar a criança capaz
de sair-se bem na vida sem ajuda. (WINNICOTT, 1988: p. 71).
O
psiquiatra do caso acima relatado que, rapidamente, diagnostica o comportamento
daquela criança, aproxima-se mais dos profissionais da medicina somática que se
preocupam mais em remover o sintoma do que em compreender que sentido ele tem. Ele
adota o ponto de vista que define o anormal como oposto à saúde e, portanto,
indício de uma patologia a ser curada por um medicamento. Neste caso em questão,
não havia sequer uma queixa que incapacitasse a criança ou perturbasse o
ambiente familiar ou escolar. Ao fazer esta opção, o psiquiatra abre mão do que
deveria ser um dos seus principais recursos: a escuta.
Para
Winnicott, a anormalidade está mais associada a uma limitação da criança em
fazer bom uso do sintoma para se defender das angústias e conflitos previstos
no desenvolvimento, do que à presença dele.
O
psiquiatra não é portanto, um curador de sintomas; ele reconhece o sintoma como
um sinal de socorro que justifica uma investigação completa da história do
desenvolvimento emocional da criança, relativo ao seu meio ambiente e a sua
cultura. A finalidade do tratamento é aliviar a criança da necessidade de
enviar o sinal de socorro. (WINNICOTT, 1988: p. 212).
Canguilhem
(1904) afirma que o patológico é anormal, mas o anormal pode não ser patológico
(pathos, que implica sofrimento), e sim adaptativo. Para Winnicott, as fobias
da infância e os comportamentos de ruptura na adolescência caracterizam-nas
como normalmente patológicas. E patologicamente normais seriam, por exemplo, os
filhos hipermaturos de pais psicóticos. Estes autores demonstram a complexidade
para definir conceitos como normalidade, anormalidade e patologia e a
impossibilidade de estabelecer fronteiras entre estes estados.
deve-se
então reconhecer o sintoma, avaliar seu peso e função dinâmica, tentar situar
seu lugar no seio da estrutura e, enfim, apreciar essa estrutura no âmbito da
evolução genética e no seio do ambiente. É dessa quádrupla avaliação
sintomática, estrutural, genética e ambiental que procede todo procedimento
psiquiátrico. (AJURIAGUERRA; MARCELLI, 1986: p. 49).
O que
aqueles profissionais sabiam daquela criança que tão facilmente diagnosticaram?
O que sabiam da escola daquela criança, daquela criança na escola, daquela criança
com os pais, dos pais daquela criança? De como ela se desenvolve, do que sente,
do que faz e o que sonha? Das qualidades que ela tem, das reações que o meio provoca
nela, de como ela brinca com os amigos, de como é quando não está agitada num
consultório com pessoas desconhecidas? O que investigaram e o que compreenderam
sobre o que aquele comportamento agitado podia estar querendo dizer? Que
hipóteses levantaram? Que respostas não tiveram e que tempo esperaram pra
encontrá-las? O que conheceram dela? Parece que quase nada. Não teriam tido
tempo. Mas mesmo tendo conhecido tão pouco dela, identificaram uma patologia a ser
tratada. E é provável que saibam muito bem descrevê-la. E rapidamente querem
curar a criança que não conhecem. Enquadrá-la na média estatística ou num
modelo ideal imposto por uma sociedade que precisa de seres conformados e
adaptados (o que acaba coincidindo com a média estatística). Querem que ela
seja a criança fácil, conformada, silenciosa. A que não dá trabalho aos
professores, que não os questiona, que não os desafia. Querem consertá-la. Ou
melhor, conCertá-la. E quem está fazendo isto com as crianças
é justamente aqueles que deveriam protegê-las dos estigmas e das pressões. Elas
não têm autonomia e vão para onde são levadas, correndo o risco de se tornarem
aquilo que outros vêem nelas e sabem delas. Sem conhecê-las.